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Um projeto livre para o cinema


Flávio Soares teve o corpo da câmera emprestado por um ano para realizar o projeto. Foto: EPITÁCIO PESSOA/ESTADÃO

SÃO PAULO – O paulistano Flávio Soares, de 32 anos, queria gravar um curta-metragem usando software livre. Estudando formas mais baratas e menos problemáticas de fazer um filme para o cinema, ele se deparou com a Elphel, uma câmera desenvolvida pelo físico russo Andrey Filippov, conhecida por ter toda a sua documentação aberta. Os softwares internos estão disponíveis na internet sob licença GNU GPL (General Public License), o tipo mais comum para designar criações que podem ser copiadas e alteradas sem pagamento de royalties.


Quando a Elphel entrou em cena, o curta-metragem Floresta Vermelha passou a ser coadjuvante na história pioneira de criar um filme narrativo usando não apenas uma câmera aberta, mas também softwares de edição livres e um site de crowdfunding para obter recursos para a empreitada. “As pessoas começaram a se oferecer para ajudar no projeto só porque achavam legal”, conta Flávio, que também é o diretor do curta-metragem.

Para viabilizar o projeto, o brasileiro pediu uma das câmeras emprestadas à fabricante. A Elphel estranhou, já que não havia desenhado seus aparelhos para o cinema, mas sim para projetos científicos (o Google usa câmeras Elphel nos carros do Street View e para escanear livros para o serviço Books).

Flávio colocou as mãos na câmera em abril com a condição de que documentasse suas experiências e devolvesse tudo em janeiro de 2013. A câmera não tinha tecla Rec, nem lente. Era uma caixa preta com entrada para um cabo que deve ser ligado a um computador, que controla tudo. “É quase como gravar um filme analógico no digital, mas pior, porque a gente não vê o que está fazendo.”

O diretor do curta adaptou uma lente para a câmera que, somada ao fato de estar sempre ligada a um computador, acabou moldando também o roteiro. “Tive de criar um roteiro basicamente de cenas internas para não ter de ficar andando com esse monte de fio por aí.”
O curta conta a história de um jovem chamado Nikolai, que volta para a casa dos pais em uma pequena vila onde a floresta adquire um brilho vermelho quando escurece. Lá, reencontra a mãe e a irmã, que aguardam o pai retornar do trabalho.


Escolhas. Flávio se tornou um entusiasta de software livre após montar uma rádio web na universidade, onde cursou jornalismo. Fez, então, documentários sobre maracatu e vídeos experimentais em desfiles de moda. Hoje, está prestes a receber um certificado em gestão de sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas. Para ele, todo seu currículo faz sentido. “É como aquela história do Steve Jobs sobre os pontos que vão se ligando durante a vida.”

Um dos pontos que levou Soares a optar pela câmera Elphel foi que, além do baixo custo quando comparada com outras câmeras profissionais, ela gravava em formato RAW, que preserva todas as informações e camadas das cenas captadas, o que dá grande liberdade para os processos de edição e pós-produção. Ele passou um ano e meio estudando, pela internet, como faria para tudo funcionar.

“Muito do que eu sei veio do aprendizado que tive que buscar por necessidade. A gente perde tempo, mas vale a pena.” O estudo rendeu um artigo técnico, o único disponível na rede, sobre como usar a câmera aberta para cinema digital.

Financiamento. Para sair do papel, foi decidido que o projeto seria bancado por mecenato colaborativo, o chamado crowdfunding. O Floresta Vermelha entrou para o site Catarse com o pedido de R$ 6.500 para ajudar a custear os gastos com o curta. O valor foi atingido na quinta-feira, com doações de 92 pessoas que, entre outras coisas, receberão convites para a festa de lançamento do curta no dia 30, em um espaço no bairro da Lapa, em São Paulo. Durante a exibição do filme, haverá também uma apresentação da banda responsável pela trilha sonora.

“Pensamos em tentar o dinheiro através de edital, mas tinha certeza que (os avaliadores) não entenderiam o projeto. Por isso buscamos um sistema alternativo”, diz Soares.

O projeto se ligou a uma organização criada na Europa chamada Apertus, que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento do cinema livre no mundo. Flávio se aproximou do grupo e, graças ao Floresta Vermelha, chamou a atenção e foi eleito para o conselho executivo.

A Apertus se originou a partir da utilização das câmeras livres norte-americanas, mas se apressou em dar início ao desenvolvimento de uma própria, chamada Axiom, com resolução melhor, de 4k (4096 × 2160) – o dobro do modelo mais recente da Elphel –, e própria para o cinema.
O anúncio provocou ansiedade nos membros desse mercado, que já vislumbram que haverá investimento mais pesado no desenvolvimento aberto e colaborativo de plataformas (software e hardware) no futuro.

“Essa revolução pode começar com a Axiom”, escreveu o cineasta austríaco Tobis Deml, em no artigo “Hollywood precisa de uma câmera de código aberto?”. “Se a Axiom obtiver sucesso em seu desenvolvimento, causará um impacto tão grande na indústria do cinema, de maneira que outros fabricantes seguirão seu exemplo para não correrem o risco de ficar para trás”, diz Deml.

Uma câmera livre não significa que necessariamente qualquer um vai poder criar uma máquina na garagem de casa. Segundo Flávio, o processo é bem diferente, por exemplo, de uma placa Arduino, que permite gerenciar qualquer tipo de dispositivo, de uma impressora 3D a um sistema de irrigação.

“Câmeras são mais complexas e ainda há partes delas, como alguns sensores, que são de tecnologia fechada. Mas o software que lê o sensor já é livre”, explica Deml. Segundo Soares, a importância da documentação técnica da câmera ser aberta e disponível na internet é que, assim, outras pessoas podem adquirir aquele conhecimento específico e criar coisas ainda mais avançadas. Para ele, é assim que a indústria deve se desenvolver.

“O legal do código aberto é que permite que outras pessoas façam e melhorem as coisas, e só dá para fazer porque as ferramentas estão aí. É só usar.”

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